como posso me aproximar do amor?
se o mais perto de terra que me chega aos pés é esse solo compactado?
cavo
a sucessão do capital quer transformar tudo em chão cimentado
temo
olho para o lado as pessoas estão com fome
e a terra está cercada
com muito gado muito gado
tem segredos que não podemos esquecer,
mas sinto que aos poucos estou me esquecendo
meu bem
tento com muita força guardar comigo
o movimento das mãos
os caminhos que me levam a estabelecer comunicação
com ela
como posso fazer comida
como posso fazer um rito
como posso fazer amor
como posso ser coletivo
como posso matar, como posso viver
tenho medo tenho medo de me esquecer
sementes geneticamente modificadas
são programadas pra não se reproduzirem mais
frutos inférteis a lambuzar nossa boca
o alimento envenenado está a nos contaminar a vida
confundindo os sentidos
erro a direção
não são de plástico minhas intenções
mas o delírio do consumo
pode acabar por me colorir o dia
preenche de lixo o vazio
me faz acreditar: banal é o que é real
os olhos as mãos os pés o indizível o intocável
como posso me aproximar do amor?
acho que estou me esquecendo
ontem morreu mais um rio
e não pude chorar nem uma lágrima
pra economizar nossa pouca água
de morte morrida eles também mata
eu não tenho medo da morte
porque também sou bicho nato
só que não me acostumo nunca
com porcaria de assassinato
quero cavar berço não quero cavar cova
quero cavar berço não quero cavar cova
quero cavar berço eu não quero cavar cova
me repito várias vezes ao dia
nele plantar feijão e ver crescer os caroço
colher cozinhar comer
isso é desejo primeiro
quando tudo ainda é abstrato
desejo fundador
por a boca sentir o gosto comer
mas como o fazer
nessa terra banhada a sangue
e glifosato?
monocultura e mata mato
quanta gente também num mata?
injusto é o velho e o novo normal
tipo fome oculta mascarada com açúcar
senhores de engenho modernos
continuam a defender seus canaviais
“desastres ambientais são castigo divino,
deus sempre sabe o que faz”
mas eu sei que no escuro da noite
eles sentem medo que essa gente também escura
decepe suas brancas cabeças
nada de divina, é justiça social
quando proibiram os tambores
esqueceram dos que trazíamos no peito
ainda que esqueçamos tudo
continuará o batuque aqui dentro
tem segredo que nunca poderemos tocar
como um amuleto, num tem jeito
é o que ainda me dá esperança de acreditar
e sim, eu sei que falo besteira
e misturo todos os assuntos
nasci com essa avaria de confundir os significantes
e mesmo quando tu está dentro de mim
não deixo de pensar
em toda merda, em toda dor
me desculpe
acho que minha alma está ferida
ainda assim sinto
o peito querendo se abrir
peixes de água doce e salgada aproveitam por mim
céu nuvem cor pétala pedra tronco areia gota
transmuto-me pra tocar aquilo que ainda não alcanço
corpo futuro
de mundo
de sonho de saliva e muita comida
buscar reflorestamento e reforma agrária
também no solo do pensamento
aos poucos, avanço
acreditar pra construir o caminho
sabendo que ele não se faz sozinho
guardar todas as sementes da paixão
ainda que em segredo
tem coisa que nunca sara
mas desejo também que a gente nunca pare
há de ser possível apesar de toda dor
como posso me aproximar do amor?
ainda não sei
então
por ora,
me aproximo
da palavra